terça-feira, 23 de novembro de 2010

As ondas

As ondas vêm, vão, tornam a vir, tornam a voltar e, nem que seja por uma gota de espuma diferente, o que é certo é que nunca são as mesmas. Tocam nos meus pés descalços, de fugida, apagam as minhas pegadas na areia, revolvem os pedaços partidos de conchas, seixos e rochas e regressam, como que amedrontadas pela visão aterradora do mundo dos homens, ao leito do grande Pai Oceano, azul e gélido.
Brancas, gordas e violentas ao bater na areia em jeito de castigo por esta atrapalhar a nobilíssima marcha azul e espumosa do mar conquistador: as ondas!
As ondas que vêm num segundo e no outro...já se foram...para sempre. São as ondas que chamam e sempre chamaram os homens ao mar. Ao de leve, se eles as queriam ouvir e não era necessário muito para os convencer a perderem-se na imensidão ou com força, agredindo estrondosamente a areia e os penhascos rochosos se eles estavam de costas ou se fingiam surdos ao apelo. De qualquer modo, chamaram-nos sempre. Mesmo com todo o mal que poderíamos representar para ele, o mar chama-nos, canta e dança para nós num avançar e recuar harmónico e poderoso feito de espuma e de caracóis frescos de água salgada. E volto a seguir o mesmo percurso nesta língua de areia que se contorce e deforma à minha passagem. Baixo-me, atraída pelo azul prateado provocado pelo brilho do sol na concha de um mexilhão e, de súbito, uma vaga de águal salgada que arde e se cola às pernas nos resquícios de espuma, empurra-me, agride-me como que a lembrar-me que o que toco não me pertence, que violo terreno sagrado e que nada do que é do mar, dele pode ser roubado. Aspiro o ar e cola-se-me à boca e às narinas o cheiro e o sabor de um oceano imerso na luz do sol, permitindo-se a ele próprio um descanso preguiçoso depois do árduo trabalho de Inverno.
Fecho os olhos e ouço mil sons. Ouço crianças a correr para a água sem qualquer tom de desafio mas antes de respeito imperial e solene que só lhes é permitido ainda pela ingenuidade, pela inocência de reconhecerem no mar, no oceano, um senhor, um soberano que guarda segredos poderosos e fantásticos. Correm para a água dando gritinhos de alegria e excitação pelo facto de esse rei tão magnífico lhes dar a possibilidade de entrar no seu reino mágico pé ante pé na rebentação das ondas e admiram-se muito dos "grandes" já não terem medo do mar e de acharem todos os seus segredos demasiado óbvios.
Ouço uma gaivota a voar e a gritar, feliz porque hoje não tem de estar em terra e pode gozar plenamente o espectáculo precioso que é o mar de prata deitado, manso sob o sol quente.
Ouço o marulhar das ondas e o sussurrar do vento a chamarem-me e a revolverem também o meu íntimo.
Ouço o som do meu coração a bater ao ritmo da onda que vem e vai e sinto que sou livre, que pertenço, tal como as conchas, os seixos e as rochas, a esse mar azul e salgado e que fez de mim mais um grão de areia a rolar na espuma...

domingo, 1 de junho de 2008

Anamar

Anamar olha-se no espelho. Saúda aquela estranha à sua frente e pergunta-lhe quem é, o que faz, de onde veio, tudo...Mas ela não lhe responde, apenas mexe os lábios conforme Anamar fala, em simultâneao com ela.
-"Não entendo!"
Branca de pânico Anamar grita cada vez mais alto...Não entende e ninguém lhe responde. Nunca ninguém lhe explicou que isto ia doer tanto, magoá-la até às lágrimas. Mais do que a dor que sente é a dor de não saber, de não haver uma alma que a tivesse feito entender, que a preparasse.
Anamar chora e chora também aquela figura feia e fragmentada no espelho agora ligeiramente quebrado pelos pulsos de Anamar. Cada lágrima que sai do seu rosto é uma dúvida, é uma gota de questões envolta em ódio, confusão, tristeza. E ela não sabe. E quanto mais odeia menos sabe, menos conhece. Odeia e não conhece aquela figura estúpida, de braços caídos, calções de ganga e camisa encarnada que se baba e se assoa com as costas da mão esquerda, à sua frente. Não conhece e odeia aquelas paredes cor-de-rosa cheias de quadros de cortiça carregados de fotografias de milhares de gente que já não conhece também. Não conhece e odeia aquele volume estranho que cresceu num repente por baixo da blusa na zona do peito. Não conhece e odeia aquele fio de sangue vermelho que lhe correu hoje pelas pernas pela primeira vez enquanto estava na escola (-"Meu Deus que vergonha!). Anamar não entende e não sabe o que há-de fazer a seguir. Não sabe com quem há-de falar ou sequer se lhe apetece falar. Apetecia-lhe antes um abraço, um gelado de nata...Mas não há ninguém à sua volta e a ninguém pode pedir nem uma coisa nem outra. Também não lhe apetece sair para ir procurar alguém disposto a isso e portanto esquece. No entanto os olhos não parecem querer parar de chorar e a sua boca não aceita o silêncio e então GRITA. Grita como uma louca e aquele ódio cego faz-lhe estalar a cabeça. Não importa, já nada importa...
E atira o corpo inanimado contra o espelho desfazendo-o em pequenos estilhaços que se espalham pelo chão do quarto e se misturam com o sangue morno que sai dos seus pulsos, do seu peito, das suas pernas, da sua cabeça...

segunda-feira, 5 de maio de 2008

A praia...

"Ás vezes gosto de correr na rebentação das ondas, a espuma a castigar-me os pés, a água salgada a arder na pele quente. Outras vezes fecho os olhos apenas...aspiro todos os odores que o mar carrega consigo, sinto o sol ardente a querer invadir-me a retina e ouço todos os sons possíveis neste areal quase infinito.
A verdade é que o Verão nesta praia tem sempre um sabor especial para mim e tudo o que ela contém me reporta para um tempo imaginário num cantinho recôndito mas tão especial na minha memória.
Faço de conta que nao ouço o chamar dos anos e dos dias que se acumularam neste esqueleto já tão frágil e, descalça, percorro a praia em passo acelerado sem querer saber dos cortes nos pés causados pelos pedaços de conchas escondidos na areia. Corro...paro...corro novamente, sempre com medo de não chegar ao fim, que um abismo se abra entre mim e as recordações que tenho desta praia tão extensa e que ainda conheço tão bem como os caminhos do meu corpo, como a estrada que percorri neste escoar calmo das horas ao qual chamei a minha vida.
Não sei se achas que isto é tolice ou se, pelo contrário, conheces este sentimento mas o facto é que todos os anos ouço este lugar chamar-me , sussurrar ao meu ouvido palavras trazidas na brisa dos primeiros dias de Verão e que não são mais do que um apelo, um pedido de reencontro. Acredito nisto mais do que em qualquer outra coisa no mundo. Acredito porque o sinto e porque acabo sempre por voltar, todos os anos, todos os Verões, aqui.
Não há um dia que passe no resto do ano que não sonhe com o despontar dos primeiros raios de sol por detrás das dunas ou com o som do chicotear das rochas pelas ondas furiosas das marés cheias...
Já estive aqui em dias de Inverno, mas não é a mesma coisa. A praia continua a mesma durante as chuvas ou mesmo com os ventos gelados que vêm do Norte, mas o espírito do Verão, do calor eterno que se liberta de cada grão de areia que aqui vive e que viaja até mim num sopro de recordações, desaparece para dar lugar a um sabor acre a vazio...
O Inverno para mim não deixa de ser um mar, um oceano imenso aliás...mas um oceano diferente daquele que banha a costa da minha praia. De Inverno sinto-me bem no alpendre envidraçado. Chego a passar dias inteiros assim, de canete em punho, papel no colo e cigarro entre os dedos...Enterrando-me cada vez mais na poltrona velha e gasta a cada hora que passa. Olho o deserto árido que é a planicíe onde a casa está aninhada e que se estende à minha frente, suplicante, desesperada por algum alívio da chuva que a fustiga, incessante...Na janela algumas margaridas que sobrevivem heróicamente ano após ano a este espaço de fumo, papel e tinta, só vendo o sol por detrás do vidro. Para lá das paredes transparentes deste alpendre iluminado há um outro oceano sim. Um oceano de terra, de pedras e oliveiras. Uma secura que estranhamente, não me angustia e que, pelo contrário me deixa calma, frágil...lânguida como o viajar dos ponteiros no relógio de pêndulo por detrás da minha poltrona feia.(...)"